Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3225/18.9T9GMR.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: INAUDIBILIDADE PROVA
NULIDADE SANÁVEL
ESCUTAS TELEFÓNICAS
REGIME JURÍDICO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Não pode ser atendida a invocação em recurso de alegada inaudibilidade da prova produzida em 1ª instância, uma vez que o Ac.FJ 13/2014, publicado no DR nº 183/2014, I, de 23.09.2014, considerou que a nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal (CPP) é sanável (por não estar elencada no artigo 119º do CPP), que está sujeita à disciplina dos artigos 120º e 121º do CPP, que não é uma nulidade de sentença (porque estas são as do artigo 379º, nº 1 do CPP) e que deve ser invocada perante o tribunal onde foi cometida, no prazo de 10 dias (artigo 105º, nº 1 do CPP) a contar da data da sessão de audiência em que tiver ocorrido, nesse período se descontando o tempo que mediar entre o pedido da cópia da gravação e a satisfação do mesmo, sob pena de dever considerar-se sanada.
2. Estando um processo em fase de instrução, o juiz de instrução pode determinar a junção aos autos de registos de localização celular - dentro do condicionalismo do art. 189 nº 2 do CPP-, mesmo que o ministério público os não tenha requerido (art. 288 nº 4 e 290 nº 1 do CPP).
3. O regime jurídico das escutas telefónicas constante dos art. 187º e ss do CPP não foi revogado pelas leis 32/2008 de 17.07 e 109/2009 de 15/09 (lei do cibercrime).
4. O princípio do contraditório é o principal e mais basilar princípio do processo penal.
Se o tribunal a quo na sentença faz referência a um facto ocorrido já depois do julgamento e do qual teve conhecimento por força do exercício das funções e que, portanto, se encontra dentro dos seus poderes de cognição não carecendo de alegação ( art. 412º do Código de Processo Civil ), mas dele não retira quaisquer consequências, tal referência não constitui violação do direito de defesa do arguido, nem dos princípios do contraditório ou da presunção de inocência.
5. Para que se possa afirmar que uma sentença padece de erro notório (art. 410 nº2 c) do CPP) ela tem de evidenciar um erro detetável por qualquer pessoa, mesmo não jurista e mesmo que não tenha assistido ao julgamento, que, por ser tão evidente e contrariar de tal modo as regras da lógica da vida, a ninguém passa despercebido.
6. Comete o crime de falsidade de testemunho p.p. art. 360º do Código Penal a testemunha que afirma o contrário da verdade histórica que os meios de prova permitiram alcançar de forma inequívoca.
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal Relação de Guimarães.

I.
No processo 3225/18.9T9GMR que corre termos no juízo local criminal de Guimarães, foi proferida sentença que condenou o arguido A. R., como autor material de um crime de falsidade de testemunho p.p. artigo 360º, nºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de 320 dias de multa à razão diária de 6€, num total de 1.920€ e ainda no pagamento das custas do processo.
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Inconformado com a condenação, o arguido interpôs o presente recurso concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição):

1 - Nestes autos de processo o Arguido A. R., foi condenado como autor material de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 e 3 do CP, na pena de 320 (Trezentos e vinte) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaz a quantia de € 1.920,00 (mil novecentos e vinte euros)
2 - Não pode, o Recorrente conformar-se de modo algum com a condenação que lhe foi aplicada, a qual considera manifestamente injusta e ilegal, na medida em que assenta em prova proibida e nula, sendo que a sua conduta não preenche os elementos do tipo.
3 - É entendimento do Recorrente que a Sentença recorrida está viciada no que concerne à matéria de facto por erro notório da apreciação da prova produzida nos autos – quer a documental proibida, quer a testemunhal que foi produzida em sede de julgamento.
4 - O Recorrente com vista à impugnação da matéria de facto, requereu ao tribunal de julgamento o suporte técnico (CDs) da prova produzida em audiência de julgamento o registo da totalidade das declarações prestadas pelo próprio e depoimentos das testemunhas, para ser feita a sua audição e transcrição.
5 - Auscultado o referido suporte, constata-se que os áudios referentes ao depoimento das testemunhas J. T. e L. M. estão em grande parte imperceptíveis, impedindo obviamente a sua transcrição e compreensão das declarações prestadas.
6 - A imperceptibilidade, ou total ausência de registo, das declarações das testemunhas J. T. e L. M. é, de peculiar relevância para a impugnação da matéria de facto dada como provada, pois o Tribunal a quo para a condenação do Arguido/Recorrente, formou a sua convicção na prova produzida em audiência de julgamento, “…,designadamente as declarações das J. T. e L. M..
7 - Para que o Recorrente possa exercer o seu direito de defesa é de todo em todo, e de primordial importância que as declarações das testemunhas estejam em perfeitas condições no que respeita à audibilidade das mesmas, caso contrário fica irremediavelmente limitado, o direito de defesa do arguido.
8 - Atenta a inaudibilidade de parte ou totalidade do depoimento das testemunhas prestadas em audiência de Julgamento e a obrigatoriedade de tais declarações terem de ser reproduzidas nos CDs e audíveis na sua totalidade sob pena de nulidade desses depoimentos, que apenas são audíveis em parte, nulidade que desde já se requer.
9 - Atendendo que o Tribunal a quo formou a sua convicção nas testemunhas J. T. e L. M., que são fundamentais para a reanálise da matéria de facto, pelo que outra alternativa não resta ao recorrente senão a de arguir a nulidade dos referidos depoimentos.
10 - Deverá ser considerada nula a produção de prova gravada nos autos produzida em audiência de julgamento, devendo para o efeito ser ordenada a repetição do julgamento.
11 - A assim não se entender, deve ser extraída da deficiência da gravação o efeito próprio de uma nulidade processual, o de anulação e repetição do acto viciado e dos actos posteriores que dele dependam.
12 – O Arguido foi condenado pelo crime de falsidade de testemunho, por nas declarações que prestou no âmbito da instrução do processo nº 166/17.0GCGMR, em que era arguido R. P., serem incompatíveis com os registos das BTS dos registos telefónicos daquele arguido, no dia 16/07/2017.
13 - Dispõe o artigo 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quando estejam em causa os crimes previstos no nº 1 do art. 187º do CPP.
14 - O regime jurídico dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real, ou seja, a intercepção das comunicações entre presentes.
15 - A obtenção de dados relativas ao passado, conforme resulta dos autos do processo nº 166/17.0GCGMR, será regulada pela Lei nº 32/2008, de 17/07.
16 - A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, versa sobre a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e colectivas e destina-se à investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes.
17 - Entendendo-se por crime grave, os crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
18 - O regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187º a 190º, do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável por extensão às "telecomunicações electrónicas", "crimes informáticos" e "recolha de prova electrónica (informática)" desde a entrada em vigor da Lei nº 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime) como regime regra.
19 - Tratando-se de obter prova por "localização celular conservada", isto é, a obtenção dos dados previstos no art. 4º, nº 1, da Lei nº 32/2008, de 17.07, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3º e 9º desta Lei.
20 - A transmissão de dados só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.
21 - Estabelece ainda o art. 9º, nº 2 da Lei 32/2008, de 17.07, que a autorização de transmissão de dados só pode ser requerida pelo Ministério Público ou pela autoridade de polícia criminal competente.
22 - Não resulta dos autos de processo nº 166/17.0GCGMR qualquer requerimento do Ministério Público a solicitar o registo de localização do referido telemóvel com o nº 9.........
23 - Tal registo foi solicitado pelo Juiz de Instrução Criminal durante as diligências de instrução.
24 - Nos termos do art. 53º, nº 2 al. b) cabe ao Ministério Público dirigir o inquérito.
25 - Todas as diligências de obtenção de prova com base naqueles diplomas legais (Lei nº 32/2008 e CPP) têm que ser obtidas durante o inquérito a pedido do Ministério Público e após despacho fundamentado do Juiz de Instrução Criminal, sempre que estas diligências violem ou possam pôr em causa direitos, liberdades e garantias.
26 - Não é ao Juiz de Instrução Criminal que compete fazer o trabalho do Ministério Público para colmatar as falhas evidentes do inquérito.
27 - Ao Juiz de Instrução Criminal cabe apenas autorizar a transmissão dos dados, mas sempre mediante requerimento do Ministério Público ou do órgão de polícia criminal.
28 - Tal requisito não pode ser ultrapassado pelo Juiz de Instrução Criminal, atendendo que, a Lei nº 32/2008 é uma lei especial que se sobrepõe sempre sobre o Código de Processo Penal (lei geral) e os poderes por ele conferidos ao Juiz de Instrução Criminal.
29 - Foi o Juiz de Instrução Criminal que, por iniciativa própria, já após o encerramento da investigação e dedução da competente acusação pública que, determinou por despacho a notificação das operadoras telemóveis para juntarem aos autos os registos de localização do telemóvel 9........, pertencente ao arguido R. P..
30 - O crime imputado ao arguido no proc. nº 166/17.0GCGMR (crime de ofensa à integridade física qualificado), não se integra no conceito de crime grave, a que se reporta a al. g), do nº 1, art. 2.º, da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho.
31 - Tais registos de localização não se poderiam usar como meio de prova no âmbito do processo nº 166/17.0GCMGMR, sob pena de nulidade insanável e de uma verdadeira proibição de prova.
32 - Foi extraída certidão onde consta as declarações proferidas pelo aqui arguido em sede de diligências de instrução no processo nº 166/17.0GCGMR e o registo das BTS dos registos telefónicos de R. P., para imputar o crime de falsidade de depoimento ao aqui Recorrente.
33 - Tais registos são meio de obtenção de prova proibida por violação dos requisitos legais previstos nos art. 9º, nº 1, 2º da Lei 32/2008 de 17/07.
34 - Tal meio de prova nunca o mesmo poderia ser utilizado nos presentes autos, por violar ostensivamente as condições previstas no art. 9º, nº 3 da Lei nº 32/2008.
35 - O Recorrente não interveio na transmissão de dados que foram invalidamente recolhidas no proc. nº 166/17.0GCGMR e não integra nenhuma das categorias elencadas nas al. a) a c) do art. 9º, nº 3 da Lei 32/2008 de 17/07.
36 - Os presentes autos, violam grosseiramente o art. 32º nº8 da CRP e o art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
37 - No processo nº 166/17.0GCGMR houve um total desrespeito pelos princípios basilares da nossa Constituição.
38 - Não é compreensível nem aceitável, que um Tribunal, no âmbito de um processo e com carácter puramente persecutório, viole sucessivamente as disposições legais que têm como objectivo proteger os direitos fundamentais do cidadão.
39 - A actuação do Juiz de Instrução Criminal é em todo inaceitável, uma vez que, ao determinar a recolha dos dados de localização do telemóvel do arguido, no processo nº 166/17.0GCGMR, extravasou ostensivamente as suas competências e obteve um meio de prova através da intromissão na vida privada de um arguido, sem qualquer fundamentação e com violação ostensiva dos requisitos legais em que o mesmo poderia ser obtido.
40 - O Juiz de Instrução Criminal aquele que deveria ser o juiz dos direitos, liberdades e garantias, violou grosseiramente o art. 32º, nº 8 da CRP e o art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no proc. nº 166/17.0GCGMR.
41 - Ao ordenar a extracção de certidão contra todas as testemunhas do arguido que foram depor no âmbito das diligências de instrução no proc. 166/17.0GCGMR, cerceou e limitou o cabal exercício do direito de defesa do arguido e limitou as testemunhas na liberdade do seu depoimento.
42 - O Ministério Público que está adstrito a um princípio de legalidade, permitiu e continuou a senda de violação de direitos fundamentais e promoveu a acção penal com base em prova proibida e violadora dos direitos fundamentais dos cidadãos.
43 - Mais grave que tudo isto, nos presentes autos o arguido foi condenado, tendo o Tribunal fundamentado a sua decisão em meios de obtenção de prova proibida e de todo o modo nula.
44 - Apesar de, nas alegações finais nos presentes autos, a defesa do arguido ter sustentado a nulidade do registo de BTS que constavam nos autos, não foi tal situação verificada nem objecto de pronúncia na sentença recorrida.
45 - Das declarações em sede de instrução do processo nº 166/17.0GCGMR, foram extraídas certidões contra todas as testemunhas arroladas pela defesa do arguido, num total de pelo menos três processos.
46 - Todos estes fundando-se em meio de prova proibida.
47 - O constante da al. i) dos factos dados como provados viola o disposto nos arts. 355º e 125º do CPP e o art. 32º, nº 5 da CRP.
48 - A sentença proferida no âmbito do proc. 166/17.0GCGMR, não foi examinada em audiência de discussão e julgamento para que pudesse ser valorada pelo Tribunal a quo e ser inserida nos factos dados como provados.
49 - Tal facto consubstancia uma violação do princípio da imediação e contraditório.
50 - O direito de defesa do arguido fica em tudo prejudicado pela não discussão daquele facto em audiência de julgamento.
51 - A sentença não constava dos autos de processo e nunca pode ser consultada pelo arguido
52 - O Tribunal a quo produziu tal prova já depois do encerramento da audiência de julgamento e fundou a sua decisão em matéria de facto, valorando prova que não foi examinada em audiência de julgamento.
53 - O Tribunal a quo valorou um meio de prova que a lei não permite, o que se configura como uma nulidade, nos termos do artigo 122.º, 1 do CPP, pelo que tornam inválido o ato em que ocorreram, e os atos subsequentes que o considerem.
54 - Não basta o simples facto de as BTS indicarem que o telemóvel está num determinado local para concluir que o arguido está na posse do mesmo.
55 - Não se pode considerar o depoimento da testemunha J. T. como coerente, objectivo e escorreito, quando o mesmo não percebia as perguntas e o alcance das mesmas, produzindo um discurso sem qualquer senso.
56 - O estado de confusão e falta de coerência das declarações da testemunha J. T. é por tal forma evidente que, a Digníssima Magistrada do Ministério Público refere a final do mesmo “É que nem sequer está em grandes condições de prestar depoimento o senhor…. Sra Dra posso fazer o requerimento?..... Faço já que assim….” (depoimento da testemunha J. T. - minutos 08:05 a 08:15).
57 - Se o Tribunal a quo considerou o depoimento da testemunha J. T. como coerente e objectivo porque deferiu a inquirição da testemunha L. M.?
58 - Se aquele depoimento foi coerente, objectivo e escorreito, qual o objectivo de produzir nova prova?
59 - É certo que, o Tribunal a quo é livre na sua apreciação da prova, mas esta prova tem de ser apreciada de acordo com as regras da experiência comum e de uma forma que não pode ser arbitrária ou subjectiva.
60 - Ao considerar o depoimento da testemunha como J. T. como coerente, objectivo e escorreito, o Tribunal a quo fez uma apreciação totalmente arbitrária da prova, violando dessa forma o princípio da livre apreciação da prova.
61 - A testemunha L. M. refere que viu a testemunha M. M. a dirigir-se à sua garagem acompanhada pelo filho R. P. e que viu o R. P. a fugir a pé.
62 - No dia dos factos, perante os militares da GNR que se deslocaram ao local a L. M. nunca referiu a presença da testemunha M. M. no local e refere ter visto o R. P. a fugir num smart azul.
63 - É certo que aquela testemunha não foi inquirida em sede de inquérito e que quando prestou as declarações aos militares da GNR não estava sob juramento.
64 - No entanto, os militares da GNR que não presenciaram os factos, verteram para o auto de ocorrência aquilo que lhe foi relatado pela testemunha, pois não tinham outra forma de apurar tais factos.
65 - Todos estas incongruências foram totalmente desvalorizadas pelo Tribunal a quo, considerando o depoimento daquela testemunha como coerente quando o mesmo não o é, mesmo quando confrontado com a prova testemunhal constante dos autos como infra se explanará.
66 - O depoimento da testemunha M. M. foi desvalorizado pelo Tribunal a quo que o considerou confuso, inseguro e com o objectivo de justificar a ausência do filho.
67 - Com efeito, enfatize-se desde já que o Tribunal a quo, revela na inquirição da testemunha um juízo pré formulado que condiciona o depoimento da testemunha, contribuindo efectivamente para o agravamento do nervosismo normal que acomete uma qualquer testemunha quando vai depor.
68 - O Tribunal desvalorizou o depoimento da testemunha M. M. quando mesmo é o que mais se coaduna com a prova documental constante dos autos, mesmo que a mesma seja prova proibida e nula como supra se enunciou.
Nulidade da qual não se prescinde.
69 - Com efeito, o Tribunal a quo considera que o telemóvel do arguido R. P. se encontra nas imediações da casa do Assistente J. T. de acordo com o constante dos registos de localização constantes a fls 202 e 203 dos autos.
70 - É certo que, imediações é um conceito abstracto podendo abarcar várias percepções.
71 - No entanto, bastaria uma análise atenta dos registos das BTS para verificar que o referido telemóvel não se encontrava nas imediações da casa do Assistente J. T..
72 - Com efeito, se atentarmos naqueles registos de localização verifica-se que no período entre as 18:30 e as 20:00, hora em que alegadamente foi cometido o crime contra J. T., o telemóvel 9........ se encontrava entre as freguesias de ..., Taipas e no centro do ...Park.
73 - A freguesia de ... dista da Rua ..., cerca de 3 km.
74 - A Rua ... dista do ...Park em Guimarães cerca de 4/5 km.
75 - Não se pode afirmar que o telemóvel do R. P. ou mesmo o R. P. estivessem nas imediações da Rua ..., onde mora a testemunha J. T..
76 - No período das 18:00 às 20:17, como afirma o Tribunal, o telemóvel do R. P. esteve em circulação entre as freguesias de ..., … e ...Park.
77 - Não se pode afirmar com toda a certeza que o telemóvel e o próprio R. P. estiveram naquele período nas imediações da Rua ....
78 - A prova documental apenas corrobora que o telemóvel do R. P. ficou em poder na sua irmã quando se deslocaram a Braga, uma vez que aquela habita na freguesia de ....
79 - Não poderia o Tribunal a quo fundamentar a sua convicção como o fez de que o R. P. se encontrava nas imediações da casa da testemunha J. T. e, daí extrair que o aqui Recorrente tinha praticado o crime de falsidade de testemunho.
80 - O Tribunal fundamenta a sua decisão, perante as incoerências, inconsistências e inverosimilhanças detectadas nas declarações do arguido.
81 - Porém, não refere em nenhum ponto da sua fundamentação de facto quais as inconsistências e inverosimilhanças que detectou nas declarações do arguido.
82 - Há uma clara falta de fundamentação da sentença no que a esta matéria diz respeito
83 - A conduta do arguido não consubstancia nenhum ilícito, sob pena de, todos os dias, em quase todos os julgamentos, ao darem-se como provados factos contrários aos trazidos pelas testemunhas, se estarem a verificar milhares de crimes de falso testemunho!
84 - O que importava demonstrar era que o arguido sabia que o R. P. não se encontrava na sua casa no dia 16 de Julho de 2017 e que, ciente disso, de forma livre e consciente, disse o contrário.
85 - Em toda a audiência de julgamento, tal facto não foi minimamente provado, nem sequer indiciado.
86 - Essencial, para o preenchimento do tipo legal de crime era que se provasse a consciência e vontade do arguido falsear o depoimento.
87 - A falsidade do depoimento não existe apenas pelo facto de o Tribunal vir a entender que se provou tal ofensa à integridade física.
88 - Esta, consiste em o agente agir com consciência da falsidade da declaração e em contrário da verdade por si adquirida, com a intenção de prestá-la dessa forma.
89 - Essa prova não se fez nos presentes autos, não foi minimamente indiciado que o arguido tivesse agido com consciência de falsidade.
90 - A verdade que se procura e se alcança no processo é, uma verdade processualmente construída, com base nos meios de prova carreados para o processo.
91 - Fazer depender a falsidade do depoimento da verdade que vier a apurar-se no processo, nomeadamente com base no depoimento da testemunha e/ou outros meios de prova, significa incorrer num raciocínio circular, com efeitos perversos relativamente ao bem jurídico que se pretende proteger, podendo redundar na impunidade de quem, deturpando a realidade, consegue convencer o tribunal de que os factos se passaram nos termos por si falsamente descritos.
92 - A falsidade de declaração a que se reporta o artigo 360º do C. Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela.
93 - O facto de o tribunal de julgamento ter condenado o R. P., ainda que com recurso a prova proibida, não determina que a conduta do ora arguido preencha os elementos objectivos e subjetivos do crime de Falsidade de testemunho previsto no artigo 360º do C. Penal.
94 - Se as declarações do aqui recorrente forem contraditórias, com a prova documental existente nos autos e a prova testemunhal produzida, não pode inferir- se, sem mais, que o arguido, aqui Recorrente sabia necessariamente que a declaração era falsa e queria faltar à verdade.
95 - De modo diverso, equivaleria a que a sua declaração se reconduzisse àquilo que cabe ao tribunal, e não à testemunha, ou seja, à descoberta da verdade material (art.º 340.º do Código de Processo Penal).
96 - Em cumprimento do disposto no nº 3, artigo 412°, CPP, consideram-se incorrectamente julgados como provados as alíneas e), f), g), h) e i)
PELO QUE revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que absolva o recorrente pelo crime de que vinha acusado, far-se-á a costumada, JUSTIÇA.
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Recebido o recurso a ele respondeu o ministério público em primeira instância defendendo a sua improcedência e concluindo a sua posição do seguinte modo ( transcrição):

1. Relativamente à alegada impercetibilidade da gravação da audiência, não pode a mesma ser invocada, em sede de recurso, uma vez que se encontra sanada, por não ter sido arguida tempestivamente, nem pelo meio adequado – AUJ n.º 13/2014.
2. O Tribunal a quo não baseou a sua convicção em qualquer prova ferida de nulidade, mas sim no depoimento das testemunhas ouvidas em julgamento, devidamente conjugada com toda a prova documental e com as regras da experiência comum e da normalidade.
3. Ao Juiz de Instrução, em obediência ao princípio da oficiosidade, tendo em vista a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, não está vedada a solicitação dos registos da BTS.
4. O recorrente pretende pôr em causa a forma como o Tribunal a quo se convenceu da verificação dos factos que considerou provados e não provados, pretendendo sindicar o uso que o Tribunal fez do princípio da livre apreciação da prova – artigo 127º do Código de Processo Penal.
5. Porém, o Tribunal a quo fez correta apreciação da prova (testemunhal e documental), de forma crítica e com recurso às regras da experiência comum, convencendo-se da verificação dos factos conforme o citado princípio da livre apreciação da prova.
6. Não houve qualquer violação do princípio do contraditório, sendo que o facto ínsito na al.h) da factualidade provada não faz caso julgado sobre este Tribunal, nem é passível de ser contraditado.
7. Bem Tribunal ao condenar o arguido pela prática do crime de falsidade de testemunho, porquanto, o arguido não podia desconhecer que não estava a prestar um depoimento verdadeiro e, outra intenção não poderia o mesmo ter senão a faltar com a verdade e de obstruir a ação da justiça.
8. A douta sentença não violou qualquer preceito legal e nela se decidiu conforme a lei e o direito.
Nestes termos, deverá ser negado total provimento ao recurso apresentado pelo arguido e mantida, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Este é o entendimento que perfilhamos.
Exªs, porém, farão a costumada justiça.
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Remetidos os autos a este tribunal de novo o ministério público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, concordando com as razões já aduzidas pelo ministério público na primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP) e ordenada a junção aos autos da sentença transitada em julgado e proferida no processo que deu origem aos presentes autos.
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Após os vistos prosseguiram os autos para conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que os poderes de cognição do tribunal da Relação estão delimitados pelas conclusões do recurso – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que analisando a síntese conclusiva, as questões que o recorrente pretende ver apreciadas são as seguintes:

a) Nulidade por impercetibilidade do registo da prova gravada que impede o exercício do direito de defesa pelo arguido;
b) Nulidade por valoração e obtenção de prova proibida;
c) Nulidade por violação dos princípios do contraditório e da presunção de inocência;
d) Erro notório na apreciação da prova;
e) Não preenchimento do tipo legal do crime.
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É a seguinte a matéria de facto apurada em 1ª instância (transcrição):

1. Factos provados

a) No dia 10/07/2018 teve lugar a inquirição de testemunhas no âmbito dos autos de instrução nº 166/17.0GCGMR do JC de Instrução Criminal de Guimarães – J2, no âmbito do qual o arguido R. P. estava acusado da prática de crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, 145, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal, com referência ao art. 132º, nº 2 do Código Penal, por factos em que é ofendido o ai assistente J. T., por factos ocorrido no dia 16/07/2017, cerca das 20.00 horas, na residência deste, sita na Rua ..., nº …, ….
b) No decurso dessa diligência de instrução foi chamada a prestar declarações como testemunha o ora arguido que após a sua identificação prestou juramento legal.
c) Durante a aludida diligência, na instância que lhe foi dirigida referiu o ora arguido que, no dia 16/07/2017, o arguido R. P. esteve na sua casa, sita no período entre as 15.00 e as 21.00 horas.
d) Mais disse que, nesse dia, cerca das 21.00 horas, o arguido recebeu uma chamada que atendeu na varanda e que mais tarde lhe disse ser proveniente da GNR em virtude da denúncia apresentada e que deu origem ao PCS 166/17.0GCGMR.
e) Porém, o arguido não prestou depoimento com verdade uma vez que era tinha perfeito conhecimento que nas referidas circunstâncias de tempo e lugar o arguido R. P. não estava consigo.
f) De resto, como consta daqueles autos as BTS dos registos telefónicos do arguido – através do nº 9........, descriminadas a fls. 201 a 203 –, referentes ao dia 16/07/2017, colocam-no nas imediações da residência de J. T. no período compreendido entre as 18.00 e as 20.23 horas.
g) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não estava a prestar depoimento de forma verdadeira em audiência de instrução e com essa sua conduta obstruía a ação da justiça.
h) Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
i) No âmbito do processo n.º 166/17.0GCGMR, que corre termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, foi no dia de ontem (23.09.2020) proferida sentença (ainda não transitada em julgado), sendo que, entre o mais, o aí arguido R. P. foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 132º nº 1, alínea h), todos do Código Penal, na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, suspensão que é subordinada ao dever de o arguido proceder, durante o referido período, à entrega ao demandante J. T., da quantia mensal de € 100,00 (cem euros), até ao dia 10 de cada mês, por conta da indemnização global que infra se fixará – artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido)
j) O arguido é reformado da PSP, aufere quantia não concretamente apurada mas não inferior a €567,00; o arguido exerce, ainda, a actividade de vigilante num centro comercial, no período nocturno, auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior ao salario mínimo nacional; vive com a sua companheira que é empregada doméstica em casa de terceiros, auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior ao salário mínimo nacional; residem em casa arrendada, pagando a titulo de renda quantia não concretamente apurada mas não inferior a €500,00; do agregado familiar fazem parte ainda um enteado do arguido, maior mas estudante e um neto, do qual tem a guarda, sendo que recebem dos pais quantia não concretamente apurada mas não inferior a €75,00 a titulo de pensão de alimentos e €90,00 para pagamento da creche.
k) Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
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2. Factos não provados

Não resultaram, com relevância para a decisão, não provados quaisquer factos.
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3. Fundamentação da decisão de facto

O Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos provados constantes das alíneas a) a s), na análise crítica da prova produzida em julgamento conjugada com os documentos juntos aos autos, nomeadamente, certidão de fls. 2 a 225 e gravação em suporte digital a fls. 233 e, bem assim, nas declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas, a saber, J. T. e L. M..
O arguido negou a prática dos factos pelos quais vem acusado, mantendo a sua versão de que no dia 16/07/2017, R. P. (arguido no processo n.º 166/17.0GCGMR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3) esteve na sua casa, sita no concelho de Braga, no período ente as 15.00 e as 21.00 horas. Relatou que, no dia em causa nos autos (dia 16/07/2017), R. P. foi visitá-lo a casa (pois havia sido submetido a uma intervenção cirúrgica), tendo aí chegado por volta das 15h00, onde permaneceu, de forma ininterrupta, até cerca das 21h00. Referiu a testemunha que R. P., entre as 19h30 e as 20h00, recebeu uma chamada telefónica e que pouco depois foi-se embora. A testemunha foi peremptória ao afirmar que o arguido nunca abandonou a residência até à hora de partir.
Assim, como se disse, em conjugação com a prova documental mencionada, mereceram atenção as identificadas testemunhas (ambas ouvidas nos termos do artigo 340º, do CPP, pois nem o Ministério Público nem a defesa apresentaram, inicialmente, qualquer prova testemunhal), porquanto apresentaram depoimentos descomprometidos, objectivos e sérios e daí nos terem merecido credibilidade.
Começando pela prova documental, foi relevante, como se disse, o teor da certidão fls. 2 a 235, designadamente, as declarações prestadas pelo aqui arguido no aludido processo, em sede de instrução, as quais foram prestadas como testemunha, e, bem assim, a informação prestada X a fls. 201 a 203. Mais foi relevante a informação de fls. 317 a 320.
Em conjugação, não fosse já suficiente para abalar a versão do aqui arguido a mencionada prova documental - conquanto que desta se percebe que através das BTS dos registos telefónicos do R. P. – através do nº 9........, referentes ao dia 16/07/2017, colocam-no nas imediações da residência de J. T. no período compreendido entre as 18.00 e as 20.23 horas -, sempre a prova testemunhal produzida em audiência veio a convencer suficientemente o tribunal da versão aduzida no libelo acusatório.
Assim, a testemunha J. T., embora evidenciando no discurso uma certa fragilidade, derivada a problemas de saúde de que tem padecido, confirmou, desde logo, as circunstâncias de tempo e lugar em que sucedeu a agressão, descreveu, sucintamente, a agressão de que foi alvo, conquanto que tal testemunha se emocionava sempre que se abordava tal assunto. Sem prejuízo, ao longo do seu depoimento sempre identificou, sem quaisquer dúvidas, o R. P. (filho dos seus vizinhos) como o autor da agressão que sofreu. Também e, por fim, referiu que conhece muito bem o R. P. por ter sido seu vizinho desde muito pequeno.
Por seu turno, a testemunha L. M., mulher da anterior testemunha, também num registo que se nos afigurou sincero e objectivo e perfeitamente lúcido e esclarecido, deu conta das desinteligências existentes entre si e os pais do R. P.. Mais esclareceu que, no dia dos factos, chegou a casa com o seu marido J. T., tendo este ido descansar para uma espreguiçadeira no terraço da habitação, tendo a testemunha, por sua vez, ido dar de comer às galinhas e, quando se dirigia para o galinheiro, avistou o R. P. e a sua mãe (sua vizinha) a dirigirem-se para a respectiva habitação, mais concretamente para a garagem. Não deu qualquer importância a tal acto, pelo que prosseguiu com a sua tarefa. Só, poucos instantes depois, ouviu gritos do seu marido e então veio na sua direcção, quando se deparou com o ele deitado no chão, ensanguentado. Aí, também percebeu que o R. P. estava a entrar para o seu veículo e seguiu viagem.
Por fim, a testemunha M. M., mãe do R. P., começou por dizer que conhece as duas anteriores testemunhas por serem seus vizinhos há cerca de 50 anos, com os quais, nos últimos tempos, não tem mantido bom relacionamento. Referiu que, no dia dos factos, encontrava-se em casa, ouviu muito barulho proveniente do exterior, tendo constatado que os filhos das duas anteriores testemunhas se encontravam aos gritos, proferindo vários impropérios contra sua pessoa. Daí que, por tal facto ligou à GNR.
Com respeito à presença do seu filho, o R. P., na tarde desse mesmo dia, em sua casa e na casa dos vizinhos, tal testemunha disse que o seu filho ali não esteve presente. Adiantou que, nesse mesmo dia, pela manhã, tinha estado com ele em Braga, a tomar o pequeno almoço. Relatou ainda que na ocasião, quando a GNR chegou ao local a seu pedido, aquela abordou-a e pediu-lhe o número de telefone do filho R. P., já que que a testemunha J. T. o identificou como autor da agressão. Perante esta exigência ligou então ao R. P., tendo passado o seu próprio telefone ao militar da GNR. Note-se então que de acordo com a informação que consta de fls. 201 a 203 é patente que o número de telefone 9........ (o do R. P.), desde as 18h00 até pelo menos as 20h17, esteve sempre na área onde ocorreram os factos.
A testemunha M. M., com respeito a tal, apenas soube dizer que por ventura o seu filho deverá ter deixado esquecido o telemóvel no veiculo da sua outra filha, quando ambas foram tomar o pequeno almoço com ele a Braga nesse dia de manhã. Sem prejuízo, tal explicação é avançada de forma atabalhoada, confusa, sem conseguir depois explicar como então contactou com o R. P. quando a GNR lho solicitou. A par também refere tal testemunha que sabe que o seu filho tem outros números de telefone, muito embora não saiba esclarecer se corresponde cada uma desses números de telemóvel a um equipamento móvel distinto ou, se pelo contrário, os vários números de telemóvel estão incorporados no mesmo equipamento móvel. Acresce ainda que, de forma pelo menos estranha e pouco usual, tal testemunha diz que apenas tem gravado no seu telemóvel um dos vários números que o seu filho tem, a saber, o dito número 9.........
Desta feita, tal testemunha apresentou um discurso confuso, inseguro e pouco objectivo, sempre evidenciando a necessidade de justificar a ausência do filho na sua casa e, portanto, na casa da vitima J. T., apresentando justificações incoerentes e pouco plausíveis, designadamente no que toca ao facto de o seu filho não ter consigo o telemóvel e, bem assim, de ter outros números de telemóvel.
Dito isto, perante as incoerências, inconsistências e inverosimilhanças detectadas nas declarações do arguido e depoimento da testemunha M. M., conforme supra descrito e à prova documental de fls. 201 a 203 e, bem assim, à credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas J. T. e L. M., conclui-se que tais declarações (as do aqui arguido) não podem merecer credibilidade, pois não passaram de uma vã tentativa de ilibar o amigo R. P., colocando-o longe dos factos que lhe são imputados no aludido processo em curso.
Assim, o tribunal convenceu-se no sentido do libelo acusatório, essencialmente pelas declarações prestadas pelas testemunhas J. T. e L. M., as quais se revelaram coerentes, objectivas e escorreitos, tratando-se depoimentos claros e precisos, com indicação das motivações do R. P., aparentemente relacionadas com relações de vizinhança. Note-se que a testemunha J. T., desde o primeiro minuto, conforme decorre da certidão de fls. 2 e ss., indicou o R. P. como autor da agressão, o que deu logo a conhecer à sua esposa, quando esta o encontrou, o que revela espontaneidade na descrição dos factos, não tendo havido um período de “meditação” sobre a identidade do autor dos factos.
No que concerne ao aspecto subjectivo, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.
O facto dado como provado sob a alínea i) decorre do conhecimento funcional da signatária, conquanto que a leitura da sentença decorreu no dia de ontem e de forma pública.
O facto dado como provado sob a alínea k) decorreu do compulso do CRC junto aos autos e ainda, quanto à situação sócio-económica do arguido (alínea j)), nas declarações prestadas pelo mesmo, sendo certo que não foi produzida qualquer prova que as infirmasse.
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Fundamentação de direito

Enquadramento jurídico penal

O arguido vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art.º 360.º n.º 1 e 3, do Código Penal.
A prova testemunhal é, talvez pela sua frequência, um dos mais importantes meios de prova (e por vezes único) em processo penal. Como refere Bentham, as testemunhas são "(...) os olhos e os ouvidos da justiça (...) É por meio delas que o juiz vê e ouve os factos que aprecia" (1).
O papel preponderante do testemunho como meio de prova, apesar de todas as falibilidades decorrentes das diversas formas de apreender a realidade que distinguem a individualidade própria de cada um, decorre muitas vezes de, precisamente, ser o único meio disponível para a apreciação de um facto concreto. A ulterior decisão judicial fica adstrita, frequentemente, a louvar-se tão só no depoimento das testemunhas (2).
A administração da justiça, enquanto interesse premente da sociedade politicamente organizada e da própria comunidade em sentido naturalístico, fundamenta a existência dos Tribunais enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art.º 205.º da CRP).
Tal administração pretende-se, embora num sentido um tanto pleonástico, justa, sendo por isso uma tarefa que a todos, e no interesse de todos, cabe auxiliar e participar, pressupondo uma responsabilização e sentido cívico de todos os intervenientes, decorrente da dignidade da função e com os interesses e consequências que envolve. No caso do Direito Penal, a administração da justiça pressupõe a existência de determinadas regras de conduta, definidas e impostas no interesse e defesa da sociedade, e a punição dos sujeitos infractores, como meio de salvaguarda dos interesses definidos por essa mesma sociedade e protegidos pelas normas penais.
Pelas consequências que geralmente advêm para os prevaricadores – maxime a perda da liberdade – essa tarefa de responsabilização dos diversos interventores no processo é por demais evidente. Neste plano, o papel do testemunho como auxiliar importante para a boa administração da justiça assume particular relevo. O testemunho prestado é a forma de participação na responsabilidade da averiguação da matéria de facto do processo e na fixação da verdade, com o consequente acerto das decisões. É essa verdade dos factos que enforma e dá conteúdo à justiça da decisão e que legitima e é pressuposto da aplicação dos mecanismos sancionatórios.
No escopo de assentar a "justeza" da decisão, em pressupostos de conformidade com a realidade, a testemunha é obrigada a dizer a verdade, não só por imperativos éticos e morais, mas também por força da própria lei (que os contém, conferindo-lhes coercibilidade) – art.º 132.º n.º 1 alínea d) do CPP. A desconformidade com essa exigência é reprovada penalmente, constituindo o crime de falso testemunho – art.º 360.º do CP.
Neste normativo protege-se o interesse do Estado na boa administração da justiça, de que se falou, através da proibição de um comportamento considerado especialmente idóneo à lesão desse interesse: - o falso testemunho.
Dispõe o normativo invocado na parte relevante que: - “1. Quem, como testemunha (...), perante tribunal (...) competente para receber como meio de prova, depoimento (...), prestar depoimento falso (...) é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. 2. (...). 3. Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.”.
A ilicitude encontra-se demonstrada pela violação da conduta proibida.
Agiu com dolo directo, predispondo-se a atingir o fim proibido por lei.
Em sede de culpa, o arguido é imputável, sabendo que a sua conduta era ilícita.
Assim sendo, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, sendo o arguido autor do crime pela qual vem acusado.
(…)
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Apreciação do recurso.

Questão prévia.

Já depois de interposto o recurso e na sequência da junção aos autos da sentença proferida no processo 166/17.0GCGMR veio o arguido requerer, além do mais, que os autos baixassem à 1ª instância para produção ulterior de prova. O requerimento não tem fundamento legal, pelo não pode ser acolhido, impondo-se, antes, o imediato conhecimento do recurso (sem prejuízo, contudo, da apreciação das questões que reitera).

Da nulidade por impercetibilidade do registo de prova gravada impeditiva do direito de defesa do arguido.

A primeira questão invocada pelo recorrente respeita à alegada inaudibilidade de dois dos depoimentos prestados no julgamento, o que, afirma o recorrente, o impede de exercer cabalmente a sua defesa. Daí pretende que seja retirada, como consequência, a “nulidade dos depoimentos” e “da decisão de facto e de direito (artigo 195º, nº 2 – 1ª parte do CPC ex vi artigo 4º do CPP)”.

Antes de mais há que convocar para a análise deste primeiro segmento do recurso a jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ 13/2014, publicado no DR 183/2014, I, de 23/09/2014 do seguinte teor:

A nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº 3 do artigo 101º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.
O referido acórdão pôs termos à querela que opunha o entendimento de que a nulidade prevista no artigo 363º do CPP deveria ser arguida perante o tribunal de primeira instância, sob pena de ter de se considerar sanada, a outro que defendia que podia ser arguida em sede de recurso. As divergências abrangiam também o momento a partir do qual, no primeiro caso, poderia ser invocada.
Considerou o referido Ac.FJ que a nulidade prevista no artigo 363º é sanável (por não estar elencada no artigo 119º do CPP) ficando sujeita à disciplina dos artigos 120º e 121º do CPP, que não é uma nulidade de sentença (porque estas são as do artigo 379º, nº 1 do CPP) e por isso deve ser invocada perante o tribunal onde foi cometida, no prazo de 10 dias (artigo 105º, nº 1 do CPP) a contar da data da sessão de audiência em que tiver ocorrido, nesse período se descontando o tempo que mediar entre o pedido da cópia da gravação e a satisfação do mesmo.
A aplicação da jurisprudência fixada à questão levantada pelo recorrente inutilizava a adição de outras considerações, uma vez que a invocada nulidade, tendo apenas sido invocada no recurso, sempre teria de considerar-se sanada.
Ocorre, contudo, que o recorrente no seu recurso transcreve partes do depoimento de uma das testemunhas (L. M.) - cuja nulidade havia invocado - e refere-se igualmente ao depoimento da outra testemunha J. T.. E fá-lo porque, apesar da fraca qualidade da gravação, é possível perceber o sentido das declarações prestadas por ambas as testemunhas e analisá-las, o que o recorrente fez, determinando que este tribunal também procedesse à apreciação dos referidos depoimentos.
E, de facto, ouvindo os depoimentos, apesar das dificuldades de audição e expressão da testemunha J. T. e da testemunha L. M. ter dito que não viu a agressão, não ficaram quaisquer dúvidas de que a agressão a J. T. ocorreu e que o seu autor foi R. P.. Eles dizem-no de forma inequívoca, e foi também afirmado no processo 166/17.0GCGMR cuja certidão, com nota de trânsito em julgado, foi mandada juntar a estes autos, para que nenhuma dúvida pudesse subsistir relativamente ao que efetivamente ocorreu.
De facto, as duas referidas testemunhas nestes autos, além de se referirem à agressão de forma clara e inequívoca – até porque ficou evidente que foi a única agressão sofrida pelo J. T. – referiram também a hora do dia a que ocorreu “ao fim do dia”, isto é, depois das 6 e meia ou por volta das 7horas (da tarde). Assim, a testemunha J. T. identificou claramente o R. P. e as horas a que ocorreu; a testemunha L. M. explicou a razão por que não viu a agressão (por ter ido tratar de pintainhos/ galinhas enquanto o marido ficou no terraço), mas quando ouviu gritos e se abeirou do marido já agredido este de imediato disse “foi R. P. que veio matar-me”, sendo que a testemunha L. M. disse ainda que só o viu a fugir, explicando a razão por que conhece bem R. P. (que com a irmã Benvinda) foi criado com eles e a razão pela qual as famílias se encontravam em conflito (o marido tinha-os proibido de passarem para o quintal pela sua porta, por uma questão de privacidade).
Portanto, não só a invocada nulidade inexiste – e sempre inexistiria por se encontrar sanada, como se disse – como o direito de defesa do arguido não ficou comprometido, ou prejudicado. O arguido pôde invocar os depoimentos que entendeu relevantes, pôde transcrevê-los, este tribunal pôde apreciá-los, pelo que o recurso neste segmento terá necessariamente de improceder.

Nulidade por obtenção e valoração de prova proibida

A sentença recorrida concluiu que o arguido mentiu e, portanto, praticou o crime de falso testemunho ao referir, no processo 166/17.0GCGMR, que o aí arguido (R. P.) estava na sua casa e na sua presença no dia e hora da agressão, não só a partir dos, já referidos, depoimentos das testemunhas, como também da análise dos registos da localização celular por referência ao telemóvel do referido R. P., que o colocaram nas imediações da residência do agredido J. T..
Entende o recorrente que a obtenção e junção aos autos dos dados sobre a localização celular não podia ser ordenada nos termos do art. 187 do CPP, porque o regime previsto no art. 187 a 189º do CPP só seria aplicável a dados sobre a localização celular obtidos em tempo real e, tratando-se da obtenção de dados relativos ao passado, a mesma deveria ser regulada pela lei 32/2008 de 17/07. Mais entende o recorrente que só o ministério público poderia requerer a obtenção e junção aos autos de tal registo, o que não ocorreu, tendo a referida junção resultado da iniciativa do juiz de instrução criminal, num despacho “arbitrário” e “em usurpação das funções do ministério público” e sem que estivesse em causa um dos crimes a que se reporta a alínea g) do nº 1 do artigo 2º da Lei 32/2008 de 17/07.
A prova assim obtida foi, portanto, no entender do recorrente, nula e, nessa medida, proibida, por violação dos requisitos legais previstos no artigo 9º, nºs 1 e 2 da Lei 32/2008 de 17/07, do nº 8 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
As diversas questões elencadas neste segmento do recurso pelo recorrente resumem-se a saber se o tribunal poderia fundar a sua convicção e assentar a decisão de condenação do arguido na prova decorrente dos dados de localização celular constantes do processo 166/17.0GCGMR, ou, dizendo de outro modo, numa palavra, se tal prova era proibida.
A questão das proibições de prova é de tal forma relevante que tem assento constitucional.
Diz-se na Lei Fundamental (artigo 32º, nº 8) que: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. O nº 4 do art. 34º prevê ainda que: É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
As proibições de produção de prova acarretam sempre, nos termos da lei, como sanção, a nulidade (cfr. ex. artigo 126º, 134º, nº 2 e 190º do CPP). Percebe-se porquê: o desrespeito pela dignidade humana que os métodos proibidos de prova, se aceites, implicariam, independentemente do resultado, constituiriam um abalo nos princípios do Estado de Direito.
A questão que se impõe dirimir é, então, a de saber se o tribunal ao basear-se nos registos da localização celular obtidos no processo 166/17.0GCGMR, utilizou prova proibida.
Estes autos iniciaram-se com uma certidão extraída do referido processo 166/17.0GCGMR.
Nesse processo constava o registo da localização celular como prova indicada na pronúncia, prova essa obtida durante a instrução do processo por decisão do juiz de instrução que ordenou “a remessa aos autos com caráter de urgência, da informação referente a todos os registos de trace-back, com indicação de todas as comunicações efetuadas e recebidas pelo cartão SIM nº 9........, no período compreendido entre as 18 horas e as 22 horas do dia 16 de julho de 2017, com anotação das correspondentes BTS/células ativadas”.
Entende o recorrente, desde logo, que não podia ter sido o juiz de instrução criminal a tomar a iniciativa de determinar a junção aos autos dos referidos registos, mas apenas o ministério público, sob pena de “usurpação” de funções por parte do juiz de instrução, relativamente às que cabem ao ministério público.
Antes de mais diga-se que quer do ministério público, quer de qualquer juiz se espera que exerça as suas funções com sujeição a critérios de legalidade e objetividade e se espera também que o exercício das funções de ambos se paute pela intenção de alcançar a verdade e a justiça.
No processo penal português, contrariamente ao que sucede noutros ordenamentos jurídicos, vg o americano, nem o ministério público é um “caçador implacável e impiedoso”, nem o juiz é remetido ao papel de mero árbitro, que mantém em relação às questões em apreciação uma “distanciação de esfinge”” (cfr Manuel Costa Andrade in sobre as Proibição da Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 206-207).
Os papéis de cada um estão perfeitamente delimitados, mas ambos convergem para o mesmo fim: alcançar a verdade e realizar a justiça.
E, assim, se o ministério público é o titular do inquérito e, tal como determinado no artigo 53º do CPP, a ele lhe cabe “colaborar como o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade”, competindo-lhe em especial receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; dirigir o inquérito (artigo 263º do CPP) deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento, interpôr recursos ainda que no exclusivo interesse de defesa e promover a execução das penas e das medidas de segurança (artigo 53º, nº 2, alíneas a) a e)), ao juiz de instrução cabe ordenar ou autorizar diversos atos (269º do CPP) durante o inquérito e investigar autonomamente o caso submetido a instrução (artigo 288º, nº 4 e 290º nº 1 do CPP).
Assim, estando o processo em fase de instrução quando foi pelo juiz de instrução determinada a junção aos autos dos referidos registos, não tem conforto legal a objeção invocada pelo recorrente ao dizer que o juiz de instrução praticou atos que só ao ministério público cabiam.
Mas não só podia fazer, como o devia fazer, dada a relevância para a descoberta da verdade e, ainda, porque os dados obtidos foram-no na sequência de solicitação do arguido no referido processo 166/17.0GCGMR (fls 90) - e o consentimento do titular sempre afastaria a nulidade (art. 126 nº 3 do CPP) -, tendo o despacho proferido transitado em julgado e os documentos juntos notificados às partes sem qualquer oposição, pelo que se alguma nulidade tivesse sido cometida ela estaria sanada, por falta de invocação atempada.
É certo que o arguido fez notar, em requerimento entrado nos autos, após a junção do acórdão proferido no processo 166/17.0GCGMR, que o ali arguido não requereu a junção dos registos de localização celular, mas tão só da fatura telefónica detalhada (fls. 90), só que também é certo que apesar de a informação obtida ter ido além da, pelo arguido, requerida, este se conformou com a sua junção aos autos, não a questionando formal ou substancialmente. Como é referido no acórdão do STJ de 25-05-2016, proferido no processo 171/12.3JBLSB.L1.S1 (relator Cons. Santos Cabral), a legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do ato, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Este entendimento aplica-se à situação em apreço.
Mas a discordância do arguido relativamente aos dados de localização celular, não fica por aqui, como já dissemos. Invoca ainda o arguido o facto de a obtenção de tais dados violar a Lei 32/2008 de 17 de julho, uma vez que, diz, tratando-se de prova por localização celular conservada, deixou de lhe ser aplicável o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos art. 187 a 190º do CPP desde a entrada em vigor da Lei 109/2009 de 15.09 ( Lei do Cibercrime) como regime regra, passando a reger a matéria a nova lei nos termos da qual todas as diligências de obtenção de prova têm de ser obtidas durante o inquérito e a pedido do ministério público, além de não caber o crime imputado ao arguido no processo 166/17.0GCGMR no conceito de crime grave a que se reporta a alínea g) do nº 1 do art. 2º da referida Lei32/2008 e de tal meio de obtenção de prova violar os requisitos previstos no art. 9 nº 1, 2º e nº 3 da mesma lei.
A questão da prova digital está regulada no Código de Processo Penal, na lei 32/2008 de 17.07 e na lei 109/2009 de 15.09. Estes três diplomas, porque aparentemente se sobrepõem, excluem, convergem, divergem, tornam difícil a tarefa de interpretação, dada a duplicação ou triplicação de regimes, geradores de um caos normativo - usando a expressão de Costa Andrade ( in RLJ nº 3950- Bruscamente no Verão passado, 279) – a reclamar que se positive no CPP todo o sistema referente aos meios ocultos de investigação, nos quais se deverão incluir as intromissões nas telecomunicações.
Ora, para se perceber o campo de aplicação de cada lei, é necessário perceber a razão da sua criação, a sua teleologia.
A lei 32/2008 de 17 de julho foi criada para transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março ( entretanto declarada inválida pelo TJUE no acórdão Digital Rights Ireland), relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, que alterou a Diretiva nº 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.06, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.
Do texto da Diretiva 2006/24/CE resultava clara, por um lado, a afirmação de que qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e da sua correspondência, mas, por outro, que as autoridades públicas só podem, mas podem, interferir no exercício desse direito quando tal se revelar necessário, numa sociedade democrática, para a segurança nacional ou para a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais ou a proteção dos direitos e liberdades de terceiros. Foi, pois, objetivo da Diretiva assegurar que nos diversos Estados-Membros fossem harmonizadas as obrigações que incumbiam aos fornecedores de conservarem determinados dados e assegurarem que eles pudessem ser disponibilizados para efeitos de investigação, deteção e repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro.
Ora sendo o objetivo da Diretiva, que a Lei 32/2008 transpôs, harmonizar a obrigação de conservação de dados entre Estados –Membros, não será lícito retirar sem mais, como o faz o recorrente, que as normas que, no CPP, regulam a matéria das “ Escutas telefónicas”- art. 187 e 188 do CPP e sua “Extensão”- art. 189 se encontram revogadas, ou que só se aplicam aos dados sobre a localização celular obtidos em tempo real. Aliás, é a própria lei 32/2008 que no nº 2 do art. 1º ressalva a possibilidade de aplicação da legislação processual penal. E se a ressalva abrange a interceção e gravação, portanto, o conteúdo das comunicações, muito mais se tem de entender que abranja a obtenção de dados de localização celular, meio de obtenção de prova muito menos intrusivo da intimidade e da privacidade das pessoas, uma vez que se trata de meros registos de localização (aproximada) obtidos independentemente da utilização de telefones, por força do acionamento de células de rede (BTS- Base Transfer Station), menos intrusivo até que as tradicionais vigilâncias policiais.
Aliás, como se diz no Ac. STJ de 08.01.2014 “o TC, no seu Ac. 213/2008 decidiu que o art. 187 nº 1 do CPP, ao consentir na interceção e gravação das conversações telefónicas, permite também o acesso a todos os dados de tráfego atinentes à concretização dessa técnica, onde se englobam os dados da faturação detalhada cobertos pelo sigilo das comunicações, incluindo a localização celular”. (Cfr. Jurisprudência referida em anotação ao art. 252-A do CPP in wwwpgdlisboa.pt.)
Ora, estando em causa, no processo 166/17.0GCGMR, um crime enquadrável na alínea a) do nº 1 do art. 187º do CPP e tendo o aí arguido solicitado, ele mesmo, a obtenção de dados sobre as suas comunicações telefónicas, a decisão de junção dos dados de localização celular - que mais do que as comunicações telefónicas efetuadas era útil porque adequada a alcançar a verdade dos factos -, não está ferida de nulidade.
De igual modo não pode, ao contrário do que faz o recorrente, invocar-se a Lei 109/2009 de 15.09 para justificar o afastamento do regime processual constante dos art. 187º e ss do CPP. A lei do Cibercrime, como é conhecida, transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. A Decisão-Quadro tinha por objetivo reforçar a cooperação entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes, nomeadamente as autoridades policiais e outros serviços especializados responsáveis pela aplicação da lei nos Estados-Membros, mediante uma aproximação das suas disposições de direito penal em matéria dos ataques contra os sistemas de informação. Tal decorre do entendimento de que existiam consideráveis lacunas e diferenças entre as legislações dos Estados-Membros, as quais podiam ser suscetíveis de entravar a luta contra a criminalidade organizada e o terrorismo e dificultar uma cooperação policial e judiciária eficaz no âmbito de ataques contra os sistemas de informação, os quais reclamam sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas.
Assim, nesse âmbito, a Lei 109/2009 passou a estabelecer disposições penais e processuais penais no domínio do cibercrime e bem assim disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal no mesmo domínio, pelo que sua convocação para os presentes autos, como o faz o recorrente, não se justifica e, muito menos, a defesa do entendimento de que tal lei afastou a aplicação dos art. 187º e ss do CPP, quando ela até expressamente a admite ( cfr. art.18).
Deve, pois, ser defendido o entendimento de que enquanto não ocorrer a reclamada alteração do CPP nesta matéria ( Cfr. Costa Andrade in Bruscamente no Verão passado – RLJ, nº 3951 e Conde Correia in Cibercriminalidade e prova digital ( CEJ), 34), é às normas vigentes do CPP que o aplicador da lei terá de recorrer relegando as leis 32/2008 e 109/2009 para as questões nelas particularizadas, justificantes das transposições de cada uma das Diretivas que estiveram na sua génese.
Ora, confrontando a atividade processual levada a cabo no processo 166/17.0GCGMR com as exigências legais decorrentes das normas processuais penais, é manifesto que nenhuma nulidade foi cometida. Acresce que a sua utilização nestes autos, não viola também qualquer normativo, uma vez que o crime aqui em apreciação cabe no catálogo do art. 187º do CPP.
Não procede, pelo exposto o recurso no aludido segmento.

Da nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório e da presunção de inocência

Um outro aspeto que merece ao recorrente desaprovação é o facto de o tribunal a quo ter feito consignar na alínea i) da sentença que:
i) No âmbito do processo n.º 166/17.0GCGMR, que corre termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, foi no dia de ontem (23.09.2020) proferida sentença (ainda não transitada em julgado), sendo que, entre o mais, o aí arguido R. P. foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 132º nº 1, alínea h), todos do Código Penal, na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, suspensão que é subordinada ao dever de o arguido proceder, durante o referido período, à entrega ao demandante J. T., da quantia mensal de € 100,00 (cem euros), até ao dia 10 de cada mês, por conta da indemnização global que infra se fixará – artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Entende o recorrente que tendo a sentença a que se reporta o facto sido proferida no dia anterior à que foi proferida nos presentes autos, não foi examinada em audiência, nem sujeita a contraditório, o que se traduz, no entender do recorrente, em violação do princípio da imediação e do contraditório ínsitos nos artigos 355º e 125º do CPP e, bem assim, o nº 5 do artigo 32º, da CRP.
O princípio do contraditório é e sempre foi o mais basilar princípio geral do direito processual penal porque, parafraseando Séneca (4-aC- 65-dC), “quem decide um caso sem ouvir a outra parte não pode ser considerado justo, ainda que decida com justiça”.
Trata-se de princípio que garante equidade entre as partes no processo e que é de tal forma relevante que está previsto em todo o processo desde o início (embora possa ter cambiantes diferentes na fase de inquérito) de que são exemplos os artigos 61º, nº 1, alíneas a), b) e g), 194, nº 4, artigo 69º, nº 2, alínea a) (relativamente ao assistente), passando pela fase de instrução (artigo 298º; 289º; 301º, nº 2 todos do CPP), até ganhar plenitude na audiência de julgamento (de que são exemplos os artigos 327º, nºs 1 e 2, 321, nº 3, 323, alínea f), 341, 348º, nº 4 e 360º, nºs 1 e 2), em observância da consagração constitucional ínsita no nº 5 do artigo 32º da lei fundamental.
O tribunal a quo fez constar da factualidade provada um facto que não constava da acusação e que não resultou da audiência de julgamento. Aditou-o por ter tido dele conhecimento por força das funções exercidas. E fê-lo porque, efetivamente, poderia ter relevância. Aliás, a sua relevância era tal que, em rigor, poderia o aqui arguido ora recorrente não ser sujeito a julgamento sem que transitasse em julgado a decisão a que se reporta o facto em causa, (razão pela qual a elaboração deste acórdão, aguardou o trânsito em julgado da referida decisão).
Ocorre, contudo, que a referência feita na decisão recorrida ao facto de ter sido proferida sentença, ainda não transitada em julgado, no âmbito do processo 166/17.0GCGMR, do qual foi extraída a certidão que deu origem aos presentes autos, não passou disso mesmo, de uma simples referência. O tribunal a quo não retirou daí qualquer consequência. Não fundou a convicção para condenação do aqui arguido e recorrente naquela sentença. Limitou-se a dizer que foi lida uma sentença e que tomou conhecimento da leitura por força das funções exercidas.
Ora, esta forma de proceder é inócua e só por isso deveria ser evitada, mas não inquina a sentença de nulidade, porque não foi usada como prova não sujeita a contraditório. A convicção do tribunal não se fundou nos factos nela assentes. A sentença nem sequer foi, nessa altura, junta aos autos pelo que não houve “produção de prova” já depois do encerramento da discussão.
De facto, depois de referir nos factos provados que foi lida a sentença proferida no processo 166/17.0GCGMR e na fundamentação da alínea de como foi obtido o conhecimento de tal facto, nunca mais o tribunal a ela se referiu, como sendo relevante ou irrelevante.
Assim sendo, desconsiderada como foi tal factualidade, não pode dizer-se que os direitos de defesa foram postergados, que foi violado o contraditório ou o princípio da presunção de inocência, o que só teria ocorrido se o tribunal não se tivesse alheado de tal factualidade, como se alheou, ou tivesse feito juntar aos autos a sentença a cuja leitura se referiu, sem contraditório e sem a consideração de não haver transitado em julgado.
É que, note-se, quer os factos notórios, quer os factos de que o tribunal tem conhecimento por força do exercício das suas funções não carecem de alegação e encontram-se dentro dos poderes de cognição do tribunal (artigo 5º e 412º do CPC aplicáveis aos autos ex vi do artigo 4º do CPP).
Portanto, também por esta via nenhuma nulidade foi cometida, improcedendo o recurso neste concreto segmento. E, evidentemente, não têm os autos que baixar de novo à 1ª instância para exercício de um qualquer contraditório, contrariamente ao requerido pelo arguido nestes autos, uma vez que o que ali se tratou, não é o que aqui se trata, servindo a junção da sentença, dados os poderes de cognição do tribunal, tão só para que nenhuma dúvida subsista sobre o acerto da decisão a tomar nestes autos.

Do erro notório na apreciação da prova

Invoca ainda o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova.
O erro notório na apreciação da prova está previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º como um dos vícios nos quais se pode fundamentar um recurso e terá de resultar do texto da decisão recorrida por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. Trata-se, como os demais, de um vício da sentença que é detetável, por qualquer pessoa, mesmo não jurista, mesmo que não tenha assistido ao julgamento, que por ser tão evidente e contrariar de tal modo as regras da lógica de vida, a ninguém passa despercebido.
Não é, portanto, o mesmo que dizer que a prova foi mal (erradamente) apreciada. São coisas diferentes. Uma sentença pode não ter vícios e a prova ter sido mal apreciada, realidade só constatável quando se vai além do texto, quando se ouve a prova ou se analisam documentos.
No segmento do recurso em análise é manifesto que onde o recorrente diz que constata um erro notório na apreciação da prova quer, claramente, dizer que no seu entender a prova foi mal apreciada. É que depois de se referir, de novo, à nulidade da prova já anteriormente abordada, passou a explicar por que razão não concorda com a valoração feita pelo tribunal a quo dos depoimentos das testemunhas J. T. e da esposa L. M..

Entende o recorrente que o tribunal não podia ter considerado o depoimento da testemunha J. T. como “coerente, objetivo e escorreito”, “quando o mesmo não percebia as perguntas e o alcance das mesmas, produzindo um discurso sem qualquer senso”, o que levou a que o ministério público, considerando que a testemunha “nem sequer está em grandes condições de prestar depoimento” requeresse a inquirição da esposa, o que foi deferido pelo tribunal ao abrigo do artigo 340º do CPP.

Efetivamente decorre da ata de julgamento que o ministério público requereu a inquirição da testemunha L. M. nos seguintes termos:

“Considerando as dificuldades de audição da testemunha J. T. e as dificuldades de comunicação com o mesmo, considerando também o objeto dos presentes autos, entendemos ser de grande relevância para a descoberta da verdade e para a descoberta do que sucedeu efetivamente no dia 16/07/2017, a inquirição como testemunha, da mulher do senhor J. T., o que se requer ao abrigo do artigo 340º do CPP”.
Este requerimento não teve oposição e foi deferido.

Ouvidas que foram as testemunhas em julgamento, sobre o respetivo depoimento veio o tribunal a exarar o seguinte:

“(…) a testemunha J. T., embora evidenciando no discurso uma certa fragilidade, derivada a problemas de saúde de que tem padecido, confirmou, desde logo, as circunstâncias de tempo e lugar em que sucedeu a agressão, descreveu, sucintamente, a agressão de que foi alvo, conquanto que tal testemunha se emocionava sempre que se abordava tal assunto. Sem prejuízo, ao longo do depoimento sempre identificou, sem quaisquer dúvidas, o R. P. (filho dos seus vizinhos) como o autor da agressão que sofreu. Também e, por fim, referiu que conhece muito bem o R. P. por ter sido vizinho desde muito pequeno”.

Por seu turno a testemunha L. M., mulher da anterior testemunha, também num registo que se afigurou sincero e objetivo e perfeitamente lúcido e esclarecido, deu conta das desinteligências existentes entre si e os pais do R. P.. Mais esclareceu que no dia dos factos chegou a casa com o seu marido J. T., tendo este ido descansar para uma espreguiçadeira no terraço da habitação, tendo a testemunha, por sua vez, ido dar de comer a galinhas e, quando se dirigia para o galinheiro avistou o R. P. e a sua mãe (sua vizinha) a dirigirem-se para a respetiva habitação, mais concretamente para a garagem. Não deu qualquer importância a tal ato, pelo que prosseguiu com a sua tarefa. Só, poucos instantes depois, ouviu gritos do seu marido e então veio na sua direção quando se deparou com ele deitado no chão, ensanguentado. Aí também percebeu que o R. P. estava a entrar para o seu veículo e seguiu viagem”.

Estes depoimentos foram, num outro momento de sentença considerados “coerentes, objetivos e escorreitos” e, bem assim, “claros e precisos”; adjetivação que mereceu reprovação por parte do recorrente.
Quer porque a gravação é de muito má qualidade, quer porque a testemunha J. T. ouve com muita dificuldade (tendo obrigado o tribunal a gritar e a repetir inúmeras vezes as questões) não se configura rigoroso ( sem qualquer explicação adicional) dizer que prestou um depoimento escorreito, claro e preciso. De facto o diálogo entre os intervenientes processuais e a testemunha foi muito difícil, o que motivou a chamada da sua mulher a tribunal.
Mas tal não significa que o que disse não merecesse credibilidade. É que apesar da dificuldade de perceber e responder ao que lhe perguntavam foi possível retirar, sem dúvida, do seu depoimento, que foi agredido pelo R. P. no final de um dia que se sabe ser o dia 16/07/2017.
E do depoimento de L. M., retira-se, sem dúvida, uma perceção clara de como tudo se passou e de como acorreu aos gritos do marido “venham depressa que em morro aqui, foi R. P. que veio me matar”, já só tendo visto o R. P. a fugir.
Ora da conjugação dos depoimentos não ficaram quaisquer dúvidas de que a agressão ocorreu e de que foi o R. P. o seu autor, sendo que tudo o resto não releva para estes autos.
De facto a realidade transmitida pelas duas testemunhas ao tribunal não deixou qualquer dúvida e apesar de, com razão, não se poder dizer que o depoimento da testemunha J. T. foi “escorreito” se dermos à palavra “escorreito” o significado que habitualmente lhe é dado de linear, de depoimento prestado de forma fluída, certo é que se entendermos a expressão escorreito com o sentido que verdadeiramente tem, isto é, sem incorreção, então nenhum dos dois depoimentos está mal adjetivado ao ser apelidado de escorreito. O mesmo se diga dos adjetivos coerente e objetivo. Ambas as testemunhas depuseram de forma genuína, com lógica e razoabilidade que é o que verdadeiramente caracteriza um depoimento coerente e retratando a experiência vivida, que é o que verdadeiramente caracteriza um depoimento objetivo.
Portanto a caracterização feita pelo tribunal a quo dos depoimentos das duas referidas testemunhas não merece a censura que o recorrente lhe aponta, embora se perceba que o faz pelo entendimento (não correto) de que as dificuldades de expressão da testemunha J. T. seriam suficientes para o desvalorizar.
Portanto, quando o recorrente afirma (concl. 56) que foi “o estado de confusão e de falta de coerência das declarações da testemunha J. T.” que veio motivar a inquirição da esposa, tal não é verdade. Foi a dificuldade de audição, compreensão e expressão, mas em nenhum momento se pode afirmar que a testemunha faltou ou quis faltar à verdade.
Portanto, a apreciação que o tribunal fez dos diversos depoimentos incluindo o de M. M. e as declarações do arguido, não consubstancia uma errada apreciação de prova (muito menos um erro notório como já atrás se disse), pelo que não se impõe alterar a factualidade assente v.g. as alíneas e), f), g), h) e i), conforme requerido pelo recorrente.

Do preenchimento do tipo legal de crime

Resta, então, saber se a factualidade apurada permite condenar o arguido nos termos em que a sentença de primeira instância o fez, que o mesmo é dizer, se estão preenchidos os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho p.p. artigo 360º, nºs 1 e 3 do CP.

Dispõe o artigo 360º, sob a epígrafe (Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução):

1. Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsas, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
2. (…).
3. Se o facto referido no nº 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.

Trata-se se um tipo de ilícito em que o bem protegido é a realização da justiça como função do Estado e é por isso um crime de mera atividade.

Como muitas vezes acontece, o testemunho é o único meio probatório não obstante ser, como diz Othman Jauerniga pior das provas” (cfr Othman Jauernig Direito Processual Civil, Munchen: Beck, 1998, 289) citado por Iolanda de Brito in Crime de Falso Testemunho prestado perante Tribunal ( Coimbra, Edit. 48).
Por isso desde sempre o falso testemunho, mesmo que nem sempre tivesse tido uma reprovação penal, constituiu sempre grave violação de um princípio ético, porque a testemunha é muitas vezes os olhos e os ouvidos da justiça, sendo através dela que o juiz vê e ouve os factos que aprecia (Cfr. Ob cit 34-35).
(Assim foi no direito ateniense (o falso testemunho era considerado uma ofensa aos deuses e um atentado contra a administração da justiça); em Roma, quer no direito antigo (Lei das XII Tábuas), quer mais modernamente, em que chegou a ser punido com a deportação; na Idade Média quando precedido de juramento ocorria “perjurium” com carácter religioso.
Em Portugal, no tempo de D. Dinis, mandava-se matar, decepar mãos, pés e tirar os olhos a quem prestasse ou mandasse prestar falsos testemunhos.
D. Afonso V mandava açoitar e cortar a língua aos perjuros.)
Esta pequena resenha histórica - retirada de Comentários ao Código Penal de Nelson Hungria, vol. IX, 473 e ss - serve, apenas, para dizer o quanto é reprovável mentir em julgamento.
E é reprovável porque muitas vezes dos depoimentos depende a liberdade ou privação dela, a honra ou a desonra e em alguns países – que não o nosso, felizmente – a vida ou a morte.
A falsidade do testemunho vai muito para além do mero esquecimento, do convencimento pessoal, da interpretação de um facto, da omissão involuntária, da efabulação, do erro, de uma falsa percepção da realidade…
A falsidade de testemunho é a violação dolosa do dever de verdade e de completude, isto é, de dizer a verdade, mas toda a verdade.
Manuel de Andrade ensinava que a prova testemunhal apresenta três riscos: risco de infidelidade da perceção e da memória da testemunha, risco de parcialidade e risco de falsidade ou reticência (intencional) do seu depoimento.
São várias as teorias sobre o que deve entender-se por declarações falsas (cfr. Comentário Conimbricense, artigo 360º e seguintes). Resumidamente pode dizer-se que, de acordo com a teoria objetiva, a falsidade do depoimento resulta da existência de contradição entre o declarado e a realidade; para a teoria subjetiva a falsidade do testemunho encontra a sua matriz na contradição entre a declaração e a ciência ou conhecimento da testemunha.
Há ainda as teorias intermédias que adotam uma solução de compromisso entre aquelas duas teorias.
Tradicionalmente o direito português sempre preferiu a conceção subjetiva (a falsidade do depoimento ocorria quando há discrepância entre o que a testemunha diz e o que sabe). Todavia no Comentário Conimbricense Medina de Seiça parece iniciar um ponto de viragem para a teoria objetiva.
São conhecidos os comentários que esta alteração do tradicional pensamento jurídico foi provocando quer ao nível da doutrina, quer da jurisprudência (cfr Nuno Brandão, “Inverdades e consequência” Considerações em favor de uma conceção subjetiva da falsidade de testemunho – anotação aos Acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009 in Revista Portuguesa de Ciência Criminal nº 3 (2010), 490-495), ob cit. 51.
Não é este o local próprio para tecer outros comentários, embora se deixe dito que a principal crítica que merece a teoria objetiva é a de deixar impune a testemunha que minta de modo tão convincente que influencie a decisão do tribunal; a teoria subjetiva é também atacável pelo facto de não ser, em rigor, possível definir o que a testemunha perceciona dos factos no momento em que ocorrem e de acabar por punir uma testemunha que involuntariamente se contradiz, mas já não aquela que apurando o depoimento não cai em contradição.
Para ultrapassar esta questão deverá, então, dizer-se que a falsidade é notória quando os meios de prova permitem conhecer a verdade histórica de forma inequívoca e a declaração é contrária a essa verdade.
Assim sendo, nos presentes autos para que o tribunal possa fazer, sem qualquer dúvida, a afirmação de que o agora arguido, após o juramento prestado perante o JIC do processo 166/17.0GCGMR mentiu, é preciso fazer o confronto das suas declarações com o que veio a provar-se (e acabou por ficar plasmado na sentença proferida).
A análise de qualquer testemunho remete-nos, portanto, desde logo para o problema da verdade.
A verdade judicial chega através de depoimentos e interrogatórios, suportando por vezes um largo trabalho de transformação, desde a sensação no momento inicial até à exposição verbal ou escrita que é o momento terminal (Alta Villa, 1981, p. 20).
A verdade é muitas vezes o produto de filtragem, seleção e assimilação dos factos narrados junto dos operadores judiciários tendendo a idealizar-se na correspondência entre a verdade real e a provada em tribunal.
A este propósito veja-se o interessante estudo de Carlos Poiares publicado no site da Ordem dos Advogados com o título “A psicologia do testemunho” no qual é chamada a atenção para uma panóplia de questões ligadas ao depoimento testemunhal desde a frequência com que no mesmo facto é narrado de diversas formas por diversas pessoas, mesmo com formação superior e jurídica, às memórias irreais, aos falsos reconhecimentos, à influência do cenário, à influência pela forma como a pergunta é formulada, enfim, tantos fatores que potenciam a existência a final de erro judiciário.
Consideramos falso o testemunho que afirmou o contrário do que, na realidade aconteceu.
Ora, o que aconteceu foi o que o ora arguido e recorrente, enquanto testemunha no processo 166/17.0GCGMR, disse que, no dia 16/07/2017, R. P. esteve em sua casa no período entre as 15h e as 21h, quando tal não correspondeu à verdade, - uma vez que o R. P. esteve com J. T. a quem agrediu - e que o fez de forma livre e consciente, sabendo que estava a prestar depoimento falso perante o JIC e que com tal conduta visava obstruir a ação da justiça.
Tanto basta para que se possa afirmar que um crime de falso testemunho foi praticado pelo arguido, razão pela qual, deverá ser mantida a sentença recorrida.

III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida em primeira instância.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
Notifique.
Guimarães, 5 de julho de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho.


1. Bentham, Traité des Preuves Judiciaires in José da Cunha Navarro de Paiva, Tratado Theorico e Prático das Provas no Processo Penal, p. 33.
2. Cfr. Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal, Vol. IX, págs. 472 e 473